Uma pedra, um ser
Rosa Lleó, 2024
From Ouro Preto to Paraty. From mines to ships. The so-called “Estrada Real” or “Caminho do Ouro” was built by enslaved people between the 17th and 19th centuries on the trails of the Guaianás Indians. It was a road of exploitation, martial, and laden with colonial violence. No longer used for commercial purposes, only a small part of it is currently deforested. It is this section that the artist Pedro Vaz follows on foot, a few centuries later. A process that begins in the so-called “Atlantic Forest”, the dense jungle characteristic of tropical latitudes, until reaching the drier and rockier areas near the site of the old mines, an area that has been extensively exploited and modified by humans. Vaz constructs a narrative based on his photographs, overlaid with a voice-over. The voice narrates this journey historically and analytically, invoking a metaphor for the human exploitation of any territory over time. In this work, the geopolitical context lacks images to describe it, the story stops at the trees, the plants, and the road, where violence is not exercised, but is implicit. A Natureza do Deslumbre (2022) is an example of the complexity with which the artist approaches the natural landscapes he works with, both consciously and intuitively.
There is a will and a need to pay attention to these places, which have so much to tell us through instruments, maps, and other objects primarily designed to capture and measure the territory. A twofold desire to know first-hand through a rational, meticulous, almost topographical approach, and then subvert it through an artistic gesture. On the table’s surface are maps with routes drawn in pencil, models, artistic objects, photographs, and natural objects such as branches, stones, and other elements with an affective or purely formal value. The table, as a horizontal element on which various associations and research documents are “read”, acquires the desire to prove, or to prove itself, about the fusion of nature/culture, that unique concept divided into two parts which, however hard we try, we find so difficult to internalise. His position as an artist serves him as a hybrid agent who is able to relate the social sciences to our actual relationship with the world. This first rational and deductive approach, of study rather than contemplation, coexists with an intermediate place that has to do with the empirical, which is fundamentally realised through the use of the body, through the experience of walking and spending time immersed in these places. The abstraction of his work aims at being aware of our inability to grasp what is in front of us, as it is beyond our perception and understanding. Vaz seeks to create a unique experience in which all things — natural/human — can coexist.
A recent body of work is aware of these limitations, of the arrogant universalism of trying to grasp everything, and of the disenchantment with the world that results from the modern and romantic legacy. The video Terra Firme (2016) shows nothing, nor can anything be seen through the lenses of visual culture or instruments of measurement. It is this short-sighted approach that perhaps includes the subtle and deep time of the Amazon rainforest, the weight of the violence that has been perpetrated over the years, and the consequences of the deforestation of kilometres of indigenous territory and medicinal plants. A way of seeing that respects rather than analyses, that warns rather than affirms, the way we relate to the world. The video Morto, made in 2004 from several photographs, intuits the presence and at the same time the absence of a body in a field. A dead person, but also an entity, a non-human, a metamorphosis to which we must pay attention.
The work Lugar (2015) consists of transporting a stone from the Serra da Arrábida Natural Park to the Foundation, and at the end of the exhibition it will be returned to its place of origin. Trajeto de um Corpo (1977) by the artist Alberto Carneiro is one of his references, which refers to Zen Buddhism in order to reflect on our relationship with space, explicitly stressing the need not to interfere too much in the course of things. Or, to quote the activist and philosopher Ailton Krenak, when he explains that we should look at birds as “they land silently, and then fly away into the heavens without leaving a mark”. The stone symbolises a vow of humility towards an element that has no value in our society, but which demands respect and care. In Vaz’s work, the moss that grows is alive and needs to be watered daily. Seen today, standing alone in the room, it becomes an allegory for the fragile state of the planet.
The exhibition Uma pedra, um ser was born out of a desire to work with the artist’s prolific oeuvre, to look at his archive of maps, paintings, drawings, objects, stones, branches, books and much more with new eyes. To think together about other routes, sometimes with lesser known and by no means monumental works, that can bring his work to the crucial place it deserves in contemporary discourses on our new and necessary relationship with the world.
Uma pedra, um ser
Rosa Lleó, 2024
De Ouro Preto a Paraty. Das minas aos navios. A chamada “Estrada Real” ou “Caminho do Ouro” foi construída por pessoas escravizadas entre os séculos XVII e XIX a partir das trilhas dos índios Guaianás. Um caminhode exploração, militar, carregada de violência colonial. Despojada de seu uso comercial, apenas uma pequena parte dela está desmatada atualmente. É esse trecho que o artista Pedro Vaz percorre a pé, alguns séculos depois. Um processo que começa por entrar na chamada “mata atlântica”, aquela selva densa característica das latitudes tropicais, até chegar a zonas mais secas e rochosas perto da localização das antigas minas, um território muito explorado e modificado pela pegada humana. Vaz constrói uma narrativa a partir de fotografias tiradas por ele próprio, às quais se sobrepõe uma voz. A voz narra esta viagem de uma forma histórica e analítica, que por sua vez invoca como metáfora a exploração humana de qualquer território ao longo do tempo. Neste trabalho o contexto geopolítico carece de imagens que o descrevam, a história detém-se nas árvores, nas plantas e na estrada onde a violência não é exercida, mas está implícita. A obra A Natureza do Deslumbre (2022) é um exemplo da complexidade com que, tanto consciente como intuitivamente, o artista aborda as paisagens naturais com que trabalha.
Há uma vontade e uma necessidade de prestar atenção a esses lugares que tanto têm para nos dizer através de instrumentos, mapas e outros objetos concebidos essencialmente para apreender e medir o território. Um duplo desejo de conhecer em primeira mão a partir de uma abordagem racional, meticulosa, quase topográfica, e depois de a subverter através do gesto artístico. Sobre a superfície de uma mesa encontram-se mapas com percursos traçados a caneta, maquetas, objetos artísticos, fotografias e também objetos naturais como ramos, pedras e outros elementos com valor afetivo ou puramente formal. A mesa, como elemento horizontal sobre o qual se “leem” diferentes associações e documentos de investigação, adquire um desejo de provar, ou de se provar a si própria, sobre a fusão natureza/cultura, esse conceito único dividido em duas partes que, por mais que tentemos, temos tanta dificuldade em interiorizar. A sua posição de artista é um agente híbrido que consegue colocar as ciências sociais em relação com a nossa ligação real com o mundo. Esta primeira abordagem racional e dedutiva, de estudo e não de contemplação, coexiste com um lugar intermédio que tem que ver com o empírico, que se realiza fundamentalmente a partir da colocação do corpo, da experiência de caminhar e de estar imerso nestes lugares. A abstração do seu trabalho visa a consciência de não poder apreender o que está à nossa frente porque ultrapassa a nossa perceção e compreensão. Vaz procura criar uma espécie de experiência única em que todas as coisas — naturais/humanas — possam coexistir.
Um último conjunto de trabalhos está consciente destas limitações, do universalismo arrogante de tentar apreender tudo e do desencanto do mundo resultante da herança moderna e romântica. O vídeo Terra Firme (2016) não mostra nada, nem nada pode ser visto através das lentes da cultura visual ou dos instrumentos de medida. É essa abordagem míope que talvez inclua o tempo subtil e profundo da floresta amazónica, o peso da violência exercida ao longo dos anos e as consequências da desflorestação de quilómetros de território indígena e de plantas medicinais. Um modo de ver que respeita mais do que analisa, que alerta mais do que afirma, sobre a forma como nos relacionamos com o mundo. O vídeo Morto, realizado em 2004 a partir de múltiplas fotografias, intui a presença e ao mesmo tempo a ausência de um corpo num campo. Um morto, mas também uma entidade, um ser não-humano, uma metamorfose à qual devemos estar atentos.
A obra Lugar (2015) consiste no transporte de uma pedra do parque natural da Serra da Arrábida para a Fundação, que, uma vez terminada a exposição, será devolvida ao seu local de origem. Trajeto de um Corpo (1977), do artista Alberto Carneiro, é uma das suas referências, que se relaciona com o budismo zen para pensar a nossa relação com o espaço, sublinhando explicitamente a necessidade de não intervir demasiado no curso das coisas. Ou, citando o ativista e filósofo Ailton Krenak, quando explica que devemos olhar para os pássaros, que, quando pousam, “pousam silenciosamente, e um dia partem de viagem ao céu, sem deixar marcas”. A pedra simboliza um voto de humildade perante um elemento que na nossa sociedade não tem qualquer valor, mas que exige respeito e cuidado. Na peça de Vaz, o musgo que cresce está vivo e necessita de água diariamente. Visto hoje, completamente sozinho na sala, torna-se um símile do estado frágil do planeta.
A exposição Uma pedra, um ser nasce do desejo de trabalhar com o prolífico corpo de trabalho do artista, de mergulhar com novos olhos nos seus arquivos de mapas, pinturas, desenhos, objetos, pedras, ramos, livros e muito mais. Pensar em conjunto noutros percursos, por vezes com obras menos conhecidas e de modo algum monumentais, que possam trazer a sua obra para o lugar crucial que lhe cabe nos discursos contemporâneos sobre a nossa nova e necessária relação com o mundo.